Muito além dos cachos: ser branca, mãe de crianças pretas
Escrevo aqui como tantas outras mães e cuidadores de crianças tentando aprender um pouco mais sobre essa montanha-russa que é a maternidade. Não sou uma especialista, terapeuta, psicóloga. Sofro como cada uma de nós em toda a aventura do dia a dia com uma criança. No meu caso, duas. Como sempre, preciso lembrar, cercada de todo meu privilégio e consciente de que cada uma tem suas demandas e trajetórias.
Sou branca, e mãe de crianças pretas. E é sobre isso que escrevo hoje. Sempre me perguntam: “Mas como, quando e por que devo ensinar meu filho o que é racismo? Mas as crianças são tão pequenas!”
Eu te respondo essa rápido: se você não ensinar, eles aprenderão com a sociedade, e vivemos numa sociedade extremamente racista. “Ah, mas eu não sou racista” Ok, então aplico aqui a frase de Angela Davis: “Não adianta não ser racista, é preciso ser antirracista.”
Existe idade para se falar sobre racismo?
Ensinar nossos filhos desde pequenos, nomear para combater é primordial, é urgente. Não só as crianças pretas para se defenderem, mas também crianças brancas, para que aprendam desde cedo sobre equidade de raça.
Me deparei com o racismo estrutural quando Alicia, minha filha mais velha, tinha 7 anos. Estava deitada no meu sofá, na minha casa, do meu condomínio de classe alta na Barra da Tijuca, num domingo qualquer, quando ela virou e disse:
“Mamãe, quero alisar meu cabelo!”
Eu não sei o que deu, mas aquela frase me bateu como um alerta, me atravessou, me doeu, me intrigou, me angustiou. Estava claro, estava na minha frente, sendo esfregado na minha cara e se eu não estivesse disposta a furar aquela bolha branca na qual a sociedade me criou, eu poderia simplesmente ter alisado o cabelo da minha filha no próximo agendamento do salão.
Então perguntei: “Por que você quer alisar o cabelo filha?” Ela respondeu: “Porque todas as minhas amigas têm cabelo liso, não tem ninguém com cabelo igual ao meu.”
A importância da representatividade para crianças pretas
Ali eu percebi que alguma coisa estava muito errada. A culpa não era das amigas, não era da minha filha, não era minha, a culpa é do racismo. Nesse caso, ele entra como um não pertencimento da minha filha a uma escola majoritariamente branca, desde o seu corpo docente ao discente.
Corpos pretos, cabelos black, tons de pele diversos não ocupavam aquele lugar elitista, por conta de toda uma história de escravidão. Os pretos estão na periferia, nas comunidades, em quilombos, em cárceres. Se avistássemos alguma mulher ou homem preto naquela escola seria como subserviente.
As fichas foram caindo, muitas bolhas estourando, e mesmo sendo uma mulher branca cheia de privilégios por ser branca, cada descoberta sobre racismo me atravessava, por conta das minhas filhas, óbvio, e principalmente porque olhei para trás e vi toda uma criação racista. Não porque meus pais eram ou “queriam” ser racistas, sim, talvez eles até fossem, mas era tão natural aquelas piadas e músicas. Era “engraçado”, o famoso racismo recreativo, o qual rimos das dores de outras pessoas como se fosse normal.
Como contribuir para a autoestima de crianças pretas
Diante disso, eu precisava fazer algo, então juntei a vontade dela de ser youtuber na época (que já passou, eu acho rs) com a minha vontade de levar informação e empoderamento para crianças pretas. Porque eu tinha que provar a frase que eu disse pra ela naquele domingo: “Não precisa alisar seu cabelo, ele é maravilhoso e você é linda bem do jeitinho que é”.
Criei o canal “Muito além de Cachos” no YouTube, uma iniciativa minha para, como diz o nome, além de falar da beleza e cuidado com os cachos e crespos, iríamos trazer representatividade em tudo que procurei nas minhas buscas para mostrar a minha filha e tantas outras meninas pretas, como elas pertenciam.
Fui atrás de mulheres pretas empreendedoras, atrás de livros, brinquedos, bonecas pretas, mostrei atrizes, cantoras, blogueiras, modelos, filósofas, cientistas, apresentadoras, todas com o cabelo e tons de pele parecidos com o dela. Mulheres ocupando espaços de poder, liberdade e autoestima.
Começar pelos cabelos
Nessa caminhada tive muita troca. Assim como nessa rede que criamos aqui, com o lançamento do canal e todo conteúdo do Instagram, percebi quantas mães brancas nunca tinham se atentado a isso e precisam de ajuda assim como eu.
Muitas mães pretas nem sabiam como cuidar, porque alisaram o cabelo a vida toda, muitas alisaram para proteger sua filha do que ela sofreu, muitas mulheres desabafando que nunca conheceram a textura de seus cabelos.
Aprendi tudo: BC, Low e No poo, cronograma capilar, cowash, curvaturas dos cachos, transição capilar. Fui atrás de salões e cabeleireiros especializados e mais além.
Descobri que produtos desejados pelas minhas filhas não cabiam no cabelo delas como: toucas de banho, toucas de natação, capacete de bicicleta, bonés e chapéus, não eram fabricados pensando nos cabelos afros. Obviamente que hoje em dia o mercado está mais atento a isso, e existem mais opções, mas ainda é difícil de achar. É preciso muita procura e dedicação.
Como estimular o antirracismo dentro e fora de casa
Aquela escola que relatei acima, tirei rapidamente quando enxerguei tudo.
Fui em busca de outra, uma que tratasse dos temas pelos quais eu estava lutando, que trouxesse inclusão, discutisse pautas antirracistas e tivesse política de cotas raciais.
O canal no Youtube me abriu muitas portas. Debatíamos o papel do negro na TV, expressões racistas que naturalizamos durante a vida, enaltecia a beleza e a cultura negra, além de trazer muitos projetos afro, principalmente de mães pretas empreendedoras para o foco. Se pararmos pra pensar, eu era a única referência, a primeira e a mais importante pra minhas filhas. Várias vezes veio a pergunta: “Por que você tem cabelo liso e eu não?”.
Acredito que junto com o canal, elas aprenderam a se amar mais, a saber cuidar de seus cachos com amor e admiração. Aprenderam porque elas são essas misturas lindas que vieram de uma relação inter-racial e aprenderam que são pretas. Não são pardas, não são morenas, não estão num limbo.
Elas têm identidade, ancestralidade, poder e escolhas, principalmente. Elas hoje já identificam uma situação racista, mesmo que não seja com elas, conseguem nomear para se defender e combater.
Uma criação antirracista começa com o exemplo. Entenda como é possível criar filhos sem preconceitos por meio da educação e da escuta ativa no texto abaixo.