Como funciona a Multiparentalidade?
Você já ouviu falar em multiparentalidade? Famílias com crianças com dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai, só dois pais, duas mães, entre outros formatos, estão inseridas nesse conceito.
Modelos alternativos de família sempre existiram, mas muitas vezes eram invisíveis para a sociedade e para a justiça. Assim, pessoas criadas como filhos eram excluídas em casos de herança, entre outros tantos direitos de filiação.
A boa notícia é que isso está mudando e cada vez mais famílias e laços afetivos estão tendo direitos garantidos pela justiça.
O que é multiparentalidade?
A multiparentalidade é o reconhecimento de que a parentalidade não está ligada apenas aos laços biológicos ou ao padrão tradicional de família mãe, pai e filhos.
Sendo assim, a multiparentalidade é a possibilidade de registro por mais de um pai ou mais de uma mãe.
Na Bahia, por exemplo, a quantidade de crianças com mais de um pai na certidão de nascimento cresceu 609% nos últimos cinco anos. Os dados são do levantamento da Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-BA), consolidado pelo jornal Correio.
A maior parte dos casos multiparentalidade registrados nesse Estado é de casais homoafetivos que tornam-se pais ou mães por meio de adoção ou outros métodos conceptivos.
Mas há também um número expressivo de casos de filiação socioafetiva, em que, por exemplo, uma criança fica com o nome do pai biológico e o de criação no seu registro de nascimento, além do nome da mãe.
Além desses, há ainda o conceito da coparentalidade, em que o vínculo parental com uma criança dispensa o vínculo conjugal entre as figuras parentais.
Os termos e conceitos ainda são confusos para muitas pessoas. Para ajudar na compreensão do tema, conversamos com a advogada Ana Carolina Mendonça, especialista em direito civil, famílias e sucessões e direito LGBTQIA+.
Ninhos do Brasil: Como é reconhecida a multiparentalidade?
Adv. Carolina Mendonça: O reconhecimento da multiparentalidade pode ser feito judicial ou extrajudicialmente. No segundo caso, a qualquer tempo, se o beneficiário do reconhecimento (filho ou filha) for maior de idade. Se for menor, deve ser respeitada a idade mínima de 12 anos e se faz necessária a concordância dos genitores já presentes na certidão de nascimento, atendidas as demais regras trazidas pelo Provimento 83 do CNJ.
Já o reconhecimento por via judicial é necessário para qualquer caso em que a criança tenha menos de 12 anos. Nesse caso, o juiz leva em consideração os princípios da afetividade; dignidade da pessoa humana; melhor interesse da criança e busca pela felicidade e direito à convivência familiar.
É importante lembrar que o processo extrajudicial tem as custas de cartório. Já para o reconhecimento judicial, pessoas que ganham até três salários mínimos podem buscar a defensoria pública para fazer de forma gratuita.
NDB: Quem pode requerer a multiparentalidade? E como deve fazer?
CM: Via de regra, o que se requer é a parentalidade socioafetiva. A multiparentalidade é uma consequência do reconhecimento dessa nova figura parental na certidão de nascimento de uma pessoa que já tem dois genitores ou genitoras no registro.
A novidade no nosso ordenamento, por construção jurisprudencial (ou seja, por decisões judiciais existentes que servem como modelo), é a coparentalidade.
Na coparentalidade, três ou mais pessoas planejam conjuntamente terem um filho, sem necessariamente terem entre si um vínculo conjugal.
NDB: Multiparentalidade, parentalidade socioafetiva e coparentalidade: qual é a ligação entre os conceitos?
CM: A princípio dizia-se que a multiparentalidade prescinde da parentalidade socioafetiva. Mas, com a chegada da coparentalidade, muitas crianças já nascem albergadas pela multiparentalidade.
E o que isso quer dizer? Quer dizer que muitas crianças já têm nascido com dois pais e uma mãe, duas mães e um pai, por exemplo, dentre outros arranjos parentais.
Um dos primeiros casos conhecidos ocorreu em 2016, na cidade de Santos (SP). Na época, o Juiz Corregedor dos cartórios, Dr. Frederico Messias autorizou, antes mesmo do nascimento da criança, que, em seu registro de nascimento, constasse o nome das duas mães, do pai (doador dos gametas) e dos seis avós.
Melhor ilustrando o caso, tratou-se de um projeto parental em que um casal de mulheres, que viviam em conjugalidade, desenvolveu seu projeto parental contando com a participação de um terceiro.
Esse terceiro era um homem com o qual não tinham nenhum vínculo de conjugalidade, mas que participou do planejamento do casal, como pai da criança, sem qualquer conjunção carnal.
Em outras palavras, um projeto parental de dupla maternidade, concomitante com uma coparentalidade!
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NDB: Padrastos e madrastas podem requerer a parentalidade de uma criança? Nesse caso, qual é a diferença entre adoção e filiação socioafetiva?
CM: São dois caminhos distintos. No caso de madrasta ou padrasto que desenvolvam vínculos de afeto com seus enteados, reconhecendo-os como seus filhos e os mesmos reconhecendo-os como seus pais, é possível se buscar tal reconhecimento legal.
No exercício da filiação por adoção, necessariamente vai existir a destituição do poder familiar: os pais biológicos deixam de ter direitos e deveres de parentalidade e a criança perde o vínculo com o genitor. Isso só pode acontecer no caso de o genitor ter incidido em uma das causas de destituição do poder familiar trazidas no artigo 1635 do Código Civil.
Já pelo caminho do reconhecimento da filiação socioafetiva, a princípio, não há a destituição do poder familiar. A criança passa a ter o acréscimo do nome do padrasto ou da madrasta em sua certidão de nascimento como pai ou mãe, passando a vivenciar uma multiparentalidade. Isso só pode acontecer, é claro, se houver um reconhecimento recíproco entre o pretenso pai e o pretenso filho.
Em outras palavras, não é o vínculo conjugal que desperta o vínculo de filiação, ele deve ser natural e autêntico e não guarda relação com a o vínculo existente entre os pais.
NDB: Em caso de separação conjugal, como fica a guarda e a pensão?
CM: Assim como no modelo tradicional de conjugalidade e parentalidade, a regra para separações no caso de multiparentalidade e da coparentalidade é a guarda compartilhada. Isso envolve a responsabilidade comum por todas as decisões que envolvam o menor.
Não havendo consenso entre as partes, se faz necessário judicializar a questão. No processo, o juiz tentará, antes de mais nada, entabular um acordo entre as partes.
Não sendo possível um consenso, ele decidirá o que entender melhor para a criança. Isso é feito de acordo com os fatos que forem trazidos ao seu conhecimento e sempre levando-se em conta o melhor interesse do menor.
NDB: Como as crianças participam do processo de multiparentalidade?
CM: As crianças são o ponto central da questão, tudo deve se pautar no que for de seu melhor interesse. A depender do procedimento eleito e da forma como o processo for conduzido pelo juízo, elas serão ouvidas por uma equipe multidisciplinar e, a partir dos 12 anos, já poderão opinar sobre a questão.
O reconhecimento da filiação socioafetiva é o modelo que a Jamily e a Luana buscaram para reconhecer a multiparentalidade da sua família. As duas são mães do Theo, e agora esperam a segunda filha. Leia mais sobre a história dessa família: