Mães lésbicas: desafios e conquistas na maternidade
Mães lésbicas ainda enfrentam preconceito e entraves burocráticos para exercer a maternidade plenamente. Mas, com muito amor, luta – e algum cansaço, é verdade – elas conseguem conquistar direitos e vencer obstáculos.
Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia no Brasil pelo menos 32 mil famílias homoafetivas formadas por duas mães.
Isso porque o Conselho Federal de Medicina aprovou em 2015 a realização de procedimentos de Reprodução Humana Assistida também para casais homoafetivos. Além disso, em 2017 o Conselho Nacional de Justiça emitiu normativa para incluir famílias LGBTQIA+ no registro das crianças: onde constava “pai” e “mãe” passou a constar “filiação”.
Entre as novas histórias que o novo censo deverá mostrar estão as dos casais Luana e Jamilly e Alessa e Fabíola, que vamos conhecer aqui.
Duas mães, um menino e mais uma menina a caminho
As cariocas Luana Ribeiro e Jamilly Monteiro são mães do pequeno Theo, de seis anos. Fruto de um relacionamento anterior de Luana, Theo tinha 10 meses quando as duas começaram a namorar. Mas a relação dele com Jamilly começou ainda na gestação, quando ela ainda nem imaginava que se tornaria a “mamãe Jamilly”.
“Nós éramos melhores amigas. A Jamilly foi a primeira pessoa para quem eu contei da gravidez. No dia do parto, era ela quem estava no hospital comigo. Na primeira noite, foi ela quem revezou o colinho para que eu pudesse descansar”, lembra Luana.
A amizade se tornou amor e as duas começaram a namorar. “Quando o Theo começou a falar mamãe, já era pra mim e pra Luana. Foi natural, sem explicações. Minha maternidade foi acontecendo sem eu planejar, quase sem eu perceber, e foi incrível”, conta Jamilly.
Foi tão incrível que o casal decidiu que estava na hora de aumentar a família. Maya está a caminho: Jamilly está no sexto mês de gestação depois de uma inseminação artificial. E o trio não poderia estar mais feliz.
Outra razão para os sorrisos da família é o processo de reconhecimento de maternidade socioafetiva de Theo. O menino, que já é registrado em nome de Luana e do pai, vai passar a ter na certidão o nome de Jamilly também como mãe, e o nome dos pais dela como avós.
A invisibilidade vivida pelas mães lésbicas: “Fala para a mãe dele”
O novo documento vai ajudar a evitar situações de exclusão e invisibilidade, como as que Jamilly passou nos primeiros anos de Theo.
“Quando fui buscar o Theo na escola, a assistente da professora me passou as ocorrências do dia, dizendo ‘fala pra mãe dele’ e, apesar de eu explicar que também era a mãe dele, ela insistia ‘fala pra mãe dele mesmo’, ‘a mãe de verdade’. Isso me machucou muito na época”.
Hoje o próprio Theo já corrige quem confundir, orgulhoso de sua família: “eu tenho duas mães, elas se amam e são casadas”.
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Para mães lésbicas, a sensação é de ainda estar abrindo portas
“Dá muito orgulho, mas também é cansativo. O Brasil ainda é muito atrasado em relação a direitos da população LGBTQIA + e da população negra”, desabafa Jamily.
Luana conta que, desde que parou de alisar o cabelo, já sentia os olhares e tratamentos diferenciados pelo cabelo black, “mas, quando chegamos juntas, duas mulheres negras e lésbicas, com uma criança, as pessoas olham de forma ainda mais estranha”, observa Luana.
“A gente precisa estar sempre ensinando como falar, como lidar, reforçando que somos pessoas que merecem respeito e que também têm direito de formar família. É difícil, mas cá estamos na luta”, conclui Jamilly.
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Visibilidade vs. proteção: quando reafirmar a maternidade lésbica?
“Quando você tem filho, a sua relação fica mais exposta. As pessoas olham, perguntam mesmo. A gente acaba ficando num dilema de marcar a posição, reafirmar nossa existência - e também de nos proteger”, observa a cantora Alessa Camarinha.
Alessa e a esposa Fabíola estão juntas há dez anos e, há três anos, são a “mami” e a “mama” do Tomás.
Elas foram o primeiro casal lésbico do grupo de amigos a se casar, o primeiro casal lésbico da clínica onde Tomás foi concebido e o primeiro registro de mães lésbicas da atendente do cartório. “As pessoas, mesmo as com boa vontade, às vezes não sabem como fazer, ou precisam rasurar documentos onde diz pai e trocar para mãe”, comenta Alessa.
As duas mães se reconhecem num lugar de privilégio por serem brancas, de classe média e seguirem o que se tem como padrão de feminilidade. Dessa forma, elas sentem viver num círculo um pouco mais blindado às agressões verbais e físicas que grande parte da comunidade LGBTQIA+ sofre.
Mas a maternidade lésbica tira o casal do seu lugar de conforto, levando-as para fora da bolha: desde o curso para gestantes até a escola, o parquinho, e as relações com os pais dos amiguinhos no condomínio. Por isso, quando falam em se proteger, o casal cita os olhares, as perguntas invasivas e o próprio cansaço de ter que explicar, o tempo inteiro, a configuração familiar.
“Ao mesmo tempo que cansa, eu também não posso esconder, porque tem uma criança ali, que precisa entender que essa é a família dela. Não posso deixar que falem que somos amigas ou outra coisa”, explica Alessa.
Mães lésbicas não precisam ser exemplo: “nossa existência já basta”
Além da exposição, também existe a pressão para ser um exemplo de diversidade dentro da comunidade LGBTQIA + e fora dela.
Nesse sentido, Alessa, por trabalhar no meio cultural e artístico, reconhece a importância da visibilidade de mães lésbicas na mídia e na publicidade. Mas também observa que existe uma grande pressão para que atendam a um padrão de diversidade aceito.
“No início, eu pensava que era uma barganha: ‘se eu for perfeita em tudo, eu vou poder viver e andar como todas as outras pessoas’, mas a maternidade traz tanta carga emocional que a gente percebe que não adianta. É impossível navegar em todas as demandas de criar uma criança, se ficar toda hora tentando mostrar para o mundo que merece esse lugar”.
“Agora a gente já elaborou e conversa muito para não colocar esse peso também na nossa família. A gente entendeu que nossa existência já basta, e precisa bastar!”, finaliza.
Quais são os caminhos para a maternidade lésbica?
Se a biologia ainda não permite que duas mulheres que se amam gerem um filho juntas, existem caminhos diferentes para a maternidade lésbica.
Além da adoção, desde 2015, casais de mulheres também podem ter filhos biológicos por meio de técnicas de reprodução humana assistida, como fertilização in vitro (FIV) e inseminação artificial.
A principal diferença entre os métodos é o local onde ocorre a fertilização do óvulo. Entenda mais:
Fertilização in vitro (FIV)
O método da fertilização in vitro é o mais complexo, mas também com maiores índices de eficácia. Aqui, a fertilização ocorre fora do corpo da mulher, em laboratório.
Um tratamento hormonal estimula a produção de óvulos da mulher para que as chances de sucesso sejam maiores. Quando os óvulos atingem determinado tamanho e maturidade, são extraídos por uma cirurgia simples de punção.
Os óvulos extraídos são então inseminados artificialmente pelo espermatozoide do doador anônimo. Depois de alguns dias em incubadora, o óvulo fecundado é transferido novamente para o útero da mulher ou para o útero da parceira – caso a opção seja pela gestação compartilhada.
Gestação compartilhada ou método ROPA (Recepção dos Ovócitos do Parceiro)
Neste caso, depois de feita a FIV, o óvulo fecundado é transferido para o útero da outra mãe.
As características de DNA são da mãe doadora do óvulo e do doador de espermatozoide. Porém, estudos de fatores epigenéticos apontam que o ambiente do útero também afeta os genes do bebê. Assim, a criança pode contar com características herdadas das duas mães.
Inseminação artificial
No caso da inseminação artificial, o sêmen do doador é introduzido diretamente no útero da mulher durante o período fértil.
Não há necessidade de retirada do óvulo e o procedimento pode ser feito no ambulatório. Como é mais simples, e não requer tanto estímulo hormonal, o custo é bem inferior.
De onde vem o espermatozoide?
Pela lei brasileira, no caso de mães lésbicas, os dois métodos só podem ser feitos com sêmem de doadores anônimos.
Apesar de doado, o sêmem não é gratuito. O custo cobre o valor dos exames prévios e do armazenamento do material. Algumas características físicas e comportamentais do doador podem ser escolhidas pelas mães, mas o sigilo da identidade é preservado.
Existe reprodução assistida para casais homoafetivos pelo SUS?
O alto custo dos procedimentos segue um entrave para muitas mulheres lésbicas que desejam ser mães. E as opções pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ainda são poucas e burocráticas.
No Brasil existem apenas 13 centros que fazem os procedimentos de reprodução assistida pelo SUS. O serviço, que atende casais heterossexuais com problemas de fertilidade, passou a atender casais homossexuais em 2015.
Ainda assim, na maioria dos casos, os medicamentos para estímulo da ovulação não são gratuitos. Além disso, o SUS não conta com banco de gametas. O casal precisa providenciar também o material de bancos de sêmen que atendam às recomendações da Anvisa.
Para pessoas interessadas, é preciso ir ao posto de saúde e solicitar agendamento no setor de reprodução humana.
E o registro?
Desde 2017 existe uma norma do Conselho Nacional de Justiça que garante a casais de mulheres ou homens o direito de registrar os filhos gestados a partir de reprodução assistida. Onde constava “mãe” e “pai”, passou a constar “filiação”, com a finalidade de incluir famílias LGBTQIA+. Os avós deixam de ser indicados como paternos e maternos: passam a ser apenas avós.
Em muitos casos, ainda pode haver desconhecimento nos cartórios, então é importante que os casais conheçam um pouco da legislação. Em alguns documentos, como o CPF, ainda não foram feitas as atualizações. Mas aos poucos, e exigindo direitos, o Brasil avança para uma sociedade mais inclusiva.
Não pode mais ser tabu: as configurações de família estão mudando para abranger mais pessoas. Veja dicas de como falar sobre diversidade com as crianças: