Carta para mim, a Samara Felippo do passado
Oi, Samara
Seguinte, pediram pra eu te escrever uma carta na época em que eu escolhesse te encontrar. Uma carta para mim mesma.
Decidi te encontrar em 2013, no puerpério da sua segunda filha. Por quê? Porque a partir daí a relação com o pai das meninas acaba, e você se encontra sozinha com duas filhas.
Acredito que junto da morte do seu pai, quando você tinha 21 anos, foi o momento mais doído da nossa vida. Mesmo com ajuda, se prepare, pois a solidão e a dores que virão serão pra valer.
E é a partir daí também que começamos nossa jornada de desconstrução e empoderamento – essa palavra mais pra frente será bem esvaziada, mas isso é outro papo. Rs
Mais tarde você vai se deparar com muitas questões, tabus, culpas e a necessidade de desaprender tudo que te ensinaram até agora. Nem sei se a gente escolheu ser mãe, até hoje seguimos nos perguntando isso. E é a partir de agora que você começa a se questionar.
Você queria mesmo ser mãe? Cedeu a um pedido do companheiro? Queria dar um neto pra nossa mãe? Mostrar à sociedade que “cumpriu o protocolo”?
Você não saberá o que fazer em muitos momentos dessa maternidade, terá muito medo e sentirá muita solidão. Mas, quando o medo vier, encare-o! Vá com medo, mesmo, essa quebra de barreira e enfrentamento do medo nos fará mais fortes.
Esse seria o primeiro conselho que te daria agora, já que a maternidade nos colocará muitos obstáculos e inseguranças, e olha…é pra sempre. Nunca se esqueça disso.
É pra sempre! Não só a criação e a preocupação emocional com suas filhas, mas também o pai que você escolheu pra elas. Mas será preciso rever as expectativas e romantizações que você fez sobre isso (ou que incutiram na gente).
Criar expectativas é um grande erro que cometemos, e nós cometeremos bastante esse erro. Pra completar, isso te causa muitas frustrações – e com isso realmente não te ensinaram a lidar. Principalmente como mãe.
Tanta coisa que você, apesar de já ter 35 anos, não sabe. Tantos desafios pela frente.
Não te ensinaram que mãe perfeita não existe.
Também não te ensinaram que a culpa não é sua. De quê? De tudo aquilo que você se achará uma fracassada. Seja na carreira, nas relações amorosas, em ser uma filha exemplar, na autoaceitação, na maternidade…
E, sim, você vai se perguntar:
“O que eu fiz?” E jamais achará a resposta, mas, mesmo assim, se culpará. E vai demorar até conseguir olhar para essas culpas e amenizá-las, mas você consegue. Te garanto.
Tem mais uma notícia triste junto com tudo isso: você vai se tratar como lixo. Ah vai. Como se você não merecesse nada. Todos os seus traumas de criança e adolescente virão à tona e te desafiarão a ser contrária, desobediente e questionadora. E na verdade isso é bom. Você não vai estagnar, endurecer.
Mais uma das coisas que você se acusará é de não ser boa o suficiente. Não se cobre tanto.
Ainda sigo tentando perdoar, acolher e abraçar você.
Não só você aí aos 35 anos, mas a Samara criança que você conhece bem, e que se achava gorda e esquisita, mesmo dentro de todos os privilégios de uma menina branca e já encaixada nos padrões.
Continuou na adolescência tentando agradar meninos, ser melhor do que as outras meninas e se adaptando em todos os moldes e padrões que a sociedade cruelmente nos impõe.
Demora, mesmo. A sociedade causa machucados que demoram a cicatrizar e essas cicatrizes ficam ali, por toda a sua vida. Não que sejam feias, são parte da sua história, da sua adaptação, do seu aprendizado.
Mas não deixaremos que essas cobranças sociais cruéis atinjam nossas filhas. Óbvio que não teremos o controle de tudo, mas conduziremos bem essas meninas brilhantes que estão na nossa vida e nasceram por meio de um corte na pele.
Porque nossas cesáreas também fazem parte disso e, literalmente, deixam cicatriz. Já falo mais sobre isso.
Então, você, daqui de onde falo, ainda estará questionando também sua capacidade – de ser inteligente, boa atriz, boa amiga, boa filha.
Mesmo já com 26 anos de carreira, tendo realizado inúmeros trabalhos lindos, e com um mínimo de consciência e discernimento, estará fantasiando com um romantismo falido.
O príncipe chegando num cavalo lindo e te amando, assumindo junto com você as responsabilidades de suas filhas. E construindo a família “perfeita”. E adivinha o que eu descobri? Isso não existe!!! Saiba.
Nessas tentativas de agradar ao masculino, na heteronormatividade compulsória, caímos em muitas ciladas de relacionamentos abusivos aos quais nos apagamos pro outro aparecer.
Abrimos mão de gostos e vontades, perdemos o brilho em alguns momentos achando que é em prol do amor. E hoje nós sabemos: amor não é isso. E agora aqui eu tenho uma notícia tão boa quanto a mãe que você será:
Você vai parar de romantizar tudo
Vai descobrir o que é amar sem dor, sem ciúme, sem posse. Um amor de parceria, de lealdade, de carinho e de apoio. Um amor que apoia, acolhe, não julga e te enaltece. Um amor que vibra com sua vitória, que joga brilho no seu brilho.
Tente encarar sua separação do pai das suas filhas de forma sábia, não disse que vai ser fácil, mas saiba também que você terá que ir lá no fundinho pra subir na mola e pular pra superfície.
Mas, olha, não precisa ser um pulo de uma vez só, a mola não é tão potente assim. Vai emergindo devagar, respirando, você não respira direito – até hoje, rs. Aproveite cada oportunidade que a vida vai te trazer pra olhar novamente pra você com amor, carinho, autoestima. Suas filhas agradecem, mesmo ainda sem terem muita consciência disso.
Você é uma mãe fabulosa
Posso te garantir, 13 anos depois, que você é uma mãe fabulosa e até hoje você não sabe disso. Ou sabe, mas ainda não consegue olhar com maturidade pra isso.
Parece que a vida a cada passo traz um novo desafio nas fases das vidas delas, hoje uma com 13 e uma com 9 anos.
Elas te trarão um olhar mais observador e desafiador para sociedade. Situações que você como menina de classe média branca jamais passou ou passará. E sabe o que tem de mais lindo nisso? Você enxergará.
Você aprenderá a lutar junto contra o racismo
Você vai entender o que é privilégio simplesmente por ser uma mulher branca numa sociedade tão racista e lutará junto, é bonito de ver, te garanto.
Aprenderá a cuidar de dois cabelos cacheados lindos, com muito esforço, amor e dedicação, você é boa nisso, pode se garantir. E não, não é prepotência ou arrogância se “garantir” sobre sua inteligência, beleza e força, não é.
Tentarão fazer você acreditar nisso com expressões tipo: “abaixa a bola”, “desce do palco”, “menos”.
Apenas vá, nunca “menos”. Sempre vá, mais e mais. Estou aqui, eu te apoio e te acho incrível.
Lembra que depois do vestibular nem sabíamos o que fazer da vida?
Lembra que nos pressionavam o tempo todo a “ser alguém na vida”? Vou te contar, até hoje a gente não sabe o que é “ser alguém na vida”. Pressão cruel também que Incutem na gente e erro esse que não cometeremos com nossas filhas.
Até porque começam a nos catequizar lá na infância, nas escolas que frequentamos, rezando uma oração que não entendemos nem o que dizia, cantando um hino, obrigadas a ficar em fila de “menor pro maior”, a gente sempre era a da frente, lembra? “A baixinha”.
Hoje você é “quase” bem resolvida em relação a espiritualidade e religião. Acreditamos no amor acima de tudo.
E junto com isso ensinaremos a elas a não se compararem, não competirem e julgarem outras meninas, a não precisarem ser aprovadas por ninguém, ensinaremos sobre empatia e amizade, mas nem tudo sai como achamos. Aquela cruel expectativa e controle lembra?
O que vem pela frente e o que vem lá de trás
Dores, exclusão, mágoas e sofrimentos virão até você através de experiências delas, e olha, você aí com uma de 4 anos e uma de 20 dias não faz ideia de como é difícil encarar essa fase. Sim, tão ou mais difícil que um puerpério.
Nossa relação com nosso pai após a adolescência não foi tão boa, eu sei, e quando ele partiu você ficou meio anestesiada, tentando lidar com a morte de alguém tão próximo, sem saber como. Isso você vai levar pra terapia como pauta essencial, com muita dor e culpa. Achando que podia ter sido uma filha melhor… como vê, isso não acaba nunca. Sempre tentando e nunca sendo suficiente.
Ainda hoje, mesmo com todo nosso estudo, nossa busca, você repetirá atitudes e expressões racistas e machistas, você está aprendendo para ensinar.
Sua geração cresceu com essas piadas e músicas recreativas nas mesas de classe média brancas. Seu pai contava e você ria. Todos riam. Não enxergava sequer a dor do racismo, da homofobia por trás disso tudo. E isso é um inferno, porque fica entranhado em cada célula do nosso corpo, mas aprendemos que somos capazes de mudar, extrair.
Você não esquecerá o parto
Vai levar ainda para terapia as dores de ter sido engolida por um sistema que te fez acreditar que não era capaz de ter um parto humanizado, respeitoso, do jeito que você queria.
Mas você não foi encorajada por ninguém ao ser redor e acabou fazendo duas cesáreas desnecessárias, com violências obstétricas que ninguém ainda falava a respeito e sequer sabiam nomear.
Não que a cesárea seja condenável, ela é necessária em muitas ocasiões, salvam vidas. Mas você era uma mulher jovem, saudável, sem nenhum problema gestacional e nos induzem a essa cirurgia em prol de um capitalismo voraz.
Você vai entender o fato da nossa mãe não nos entender
Você e sua mãe, sua maior incentivadora e seu amor, terão ainda muitos embates pela frente, eles ficarão mais difíceis, porque muitas coisas da criação dela você não quer levar adiante com suas filhas e isso a magoará e daqui a uns anos você estará despertando novamente essa mulher adormecida que você sempre quis ser e sua mãe não aceitará em muitos aspectos.
Seja paciente, ela te ama e só quer te proteger. E ela ama essas netas mais do que tudo.
Você vai morar em São Paulo, vai morder a língua e vai ser bom
Sim, moramos em São Paulo. Achou que nunca mudariam de cidade né? Depois de 5 anos de namoro com o amor da nossa vida, decidimos morar juntos. Tenho certeza que você está pensando: “nem morta eu moro junto com alguém. Não vou namorar mais. Como? Não quero enfiar essa maternidade na vida de alguém. Não tenho saúde, tempo, vontade.”
Sim, te compreendo super. Mas, olha, esse cara vai te fazer pensar diferente. Vai ser sua família, a que você escolheu com maturidade, elas o amarão e ele a elas.
Você ainda vai viver uma pandemia
Para terminar, preciso te dizer que enfrentaremos uma pandemia doida de um vírus chamado covid-19. Assim que vocês se mudarem pra São Paulo, tudo fechará, ficaremos os quatro trancados em casa e sabe o que aprenderemos? O homeschooling! Um terror, mas que também trouxe muitos aprendizados.
Então o aprendi até hoje e aprendo sobre ser mãe?
Que a responsabilidade de dar rumo à vida de outras pessoas que dependem de você é enorme. Que é preciso com sabedoria dizer mais não do que sim e tirar do seu caminho aquilo que não te faz bem.
Aprendi a realizar meus sonhos pra que elas se inspirem.
Que a maternidade quando se torna uma escolha consciente, cheia de amor e parceria, é um dos momentos mais sublimes da vida.
Aprendi a pedir ajuda sem culpa.
Aprendi que não sou mulher maravilha e quando colocamos o mundo e os filhos nas costas, junto com toda a culpa, é caótico, pesado, exaustivo e solitário.
O que preciso mesmo é de você e de muitas Samaras que ainda virão.